sexta-feira, 8 de julho de 2011

Com medo dos alunos

    Provocado pela indisciplina na sala de aula, um distúrbio psicológico se alastra entre os professores: a fobia escolar.

    Há um problema novo nas escolas brasileiras: a indisciplina nas salas de aula assumiu tais proporções que muitos professores estão com medo dos alunos. Não se trata da violência que, nos bairros pobres, ultrapassa os muros escolares e ameaça fisicamente os educadores, mas sim de um fenômeno de subversão do senso de hierarquia que ocorre em grandes redes de ensino privadas e também está presente em colégios tradicionais. Uma explicação parcial para essa mudança de comportamento é a seguinte: os alunos ignoram a autoridade do professor porque o vêem como uma espécie de empregado ou prestador de serviços, pago por seus pais. Uma das queixas mais comuns dos professores diz respeito ao sentimento de impotência diante de alunos indisciplinados. Certas escolas agem como se a lógica do comércio – aquela que diz que o freguês sempre tem razão – também valesse dentro da classe. "Os professores estão sofrendo de fobia escolar, antes um distúrbio psicológico exclusivo das crianças", diz o psicanalista Raymundo de Lima, professor do departamento de fundamentos da educação da Universidade Estadual de Maringá, no Paraná.  
    O professor que desenvolve fobia escolar sente um pavor profundo da escola e da sala de aula, acompanhado de alterações físicas como palpitações e tremores. Os ambulatórios psiquiátricos dos hospitais brasileiros já registraram o aumento dos casos de professores com distúrbios de ansiedade, entre eles a fobia escolar. "O número de professoras que têm procurado atendimento por estar estressadas, deprimidas ou sofrendo de crise do pânico aumentou cerca de 20% nos últimos três anos", diz Joel Rennó Júnior, coordenador do Projeto de Atenção à Saúde Mental da Mulher do Hospital das Clínicas de São Paulo. Até meados dos anos 90, esse tipo de distúrbio psicológico era um quase monopólio daqueles professores que trabalham em escolas públicas. Hoje, afeta igual quantidade de educadores de colégios particulares. 
"Os alunos me enlouqueciam, por isso resolvi deixar o ensino e me dedicar a um doutorado. Eu me sentia humilhado. Não havia nenhum respeito pelos professores. Durante o intervalo, meus colegas chegavam à sala de convivência tremendo de raiva. Alguns choravam. E o pior é que não recebíamos apoio nem dos pais, que protegem demais os filhos, nem dos coordenadores, que têm medo de perder alunos."
   Sempre fez parte do desafio do magistério administrar adolescentes com hormônios em ebulição e com o desejo natural da idade de desafiar as regras. A diferença é que, hoje, em muitos casos, a relação comercial entre a escola e os pais se sobrepõe à autoridade do professor. "Ouvi em muitas reuniões com coordenadores o lembrete de que os pais e os alunos devem ser tratados como clientes e, como tais, têm sempre razão", diz Iole Gritti de Barros, de 54 anos, professora aposentada. Durante 33 anos ela ministrou aulas de história para alunos da 5ª série em colégios particulares de São Paulo. Em algumas escolas, o temor de desagradar aos pais e perder os alunos acaba se sobrepondo à necessidade de impor ordem na sala de aula. A postura leniente com a disciplina explica-se, em parte, pelo número crescente de carteiras vazias. Em cinco anos foram abertas 2.000 novas instituições particulares de ensino fundamental e médio, enquanto a quantidade de alunos permaneceu inalterada.
   Todo professor se prepara para as diabruras tradicionais dos alunos, como colocar tachinhas na cadeira em que ele vai sentar ou barbantes estendidos no chão da sala para vê-lo tropeçar. São comportamentos que fazem parte do folclore escolar. A diferença agora é que em muitas escolas os bagunceiros não são mais castigados. "Há quarenta anos um jovem que adotasse esse tipo de postura seria punido pela escola e receberia uma bronca em casa, tornando-se motivo de vergonha para os pais", diz a pedagoga carioca Tania Zagury, autora do livro Escola sem Conflito: Parceria com os Pais. "Hoje, a punição é cada vez mais rara, tanto na escola como em casa." Os pais têm larga parcela de culpa no que diz respeito à indisciplina dentro da classe. É uma situação cada vez mais comum: eles trabalham muito e têm menos tempo para dedicar à educação das crianças. Sentindo-se culpados pela omissão, evitam dizer não aos filhos e esperam que a escola assuma a função que deveria ser deles: a de passar para a criança os valores éticos e de comportamento básicos.  
   É uma relação contraditória. Os pais entregaram a educação dos filhos aos colégios, mas alguns acham exageradas as exigências escolares ou as punições impostas aos indisciplinados. Também se vêem no direito de deixar o filho na escola com atraso ou buscá-lo mais cedo, a pretexto de viajar ou ir ao dentista – como se o horário de estudo não tivesse importância. Sem poder impor regras aos alunos, os professores acabam ficando impossibilitados de fazer aquilo que os pais esperam deles. A escola é um lugar onde as crianças aprendem a convivência em sociedade, com todas as suas regras. Ao perceberem que os pais estão sempre do seu lado, os estudantes ficam com a impressão de que tudo é permitido. "Um aluno chegou a me dizer que não iria fazer o que eu estava pedindo porque, como o pai dele pagava a escola, ele se comportava como queria lá dentro", diz a pernambucana Sandra Helena de Andrade, professora de português em duas escolas privadas do Recife. 
"Nas reuniões com os coordenadores eles exigiam que a gente tratasse os alunos como clientes, lembrando que freguês tem sempre razão. Um absurdo. Eu sei que a escola é uma empresa, mas tratar os alunos como clientes ou patrões é uma total inversão dos papéis. Uma vez um aluno me disse que não ia me obedecer porque quem pagava a escola era ele. Fiquei furiosa. Não sei o que será desses alunos, com valores morais deturpados. Eles acham que podem tudo."
   O professor acaba submetido a múltiplas pressões. É seu dever ensinar, impor disciplina aos alunos e, ao mesmo tempo, evitar que a escola perca "clientes". "Os esforços para passar a matéria equivalem a uma parcela mínima do desgaste físico e mental do professor", diz Marcos Hideaki Ono, de São Paulo, professor de física durante dez anos. O restante da energia é aplicado para controlar a classe, motivar os alunos e, às vezes, ensinar aos adolescentes princípios morais e éticos básicos. Ono, de 37 anos, conta que não suportava mais a agressividade dos alunos e, recentemente, abandonou o ensino para seguir carreira acadêmica em física. "Nos intervalos das aulas, era comum ver colegas tremendo de raiva ou chorando na sala de convivência dos professores", diz Ono. Uma de suas colegas pediu demissão depois que os alunos começaram a atirar-lhe moedas, insinuando que ela, por ser negra, era indigente.  
   A autoridade do professor é importante no processo de aprendizagem do aluno. No passado, o respeito ao mestre era imposto de forma autoritária, sem deixar espaço para um relacionamento informal. Castigos e palmadas eram considerados excelentes métodos para moldar a personalidade de alunos rebeldes e prepará-los para a vida adulta. Em geral, as escolas incorporavam um estilo disciplinar de inspiração militar. Esse modelo começou a ser substituído na década de 60, com a difusão da psicologia e de métodos pedagógicos que valorizavam o respeito à individualidade da criança e do estudante. Passou a valer o conceito de que punir e reprimir os alunos era ruim para o desenvolvimento da criatividade e do espírito crítico. Nas décadas de 70 e 80, ainda predominava um meio-termo entre o respeito à autoridade do professor e a liberdade concedida aos alunos. "Nos últimos anos, esse equilíbrio foi desfeito pela postura dos pais de se colocar sempre em defesa dos filhos e pela necessidade das escolas de manter os alunos a qualquer custo", diz Dante Donatelli, coordenador do Colégio Sidarta, de São Paulo.  
                        O desafio de ensinar na periferia
   Se o professor de escola particular precisa ter jogo de cintura para lidar com a falta de disciplina em classe, o de rede pública necessita ser pós-graduado em regras de sobrevivência. Ambos defrontam com o problema da falta de disciplina, mas as salas superlotadas dos bairros mais pobres incluem agravantes. O jovem da periferia entra na escola sem grandes perspectivas de futuro e essa frustração acaba se refletindo em sua relação  com  o  professor.   O  aluno  não sonha em ser médico ou advogado. Quer ser pagodeiro, jogador de futebol; o que importa é fazer sucesso e ganhar dinheiro rápido. Essa inversão de valores contém enorme potencial de violência. "Quem sobressai socialmente numa escola de periferia não é mais o aluno estudioso, mas o valentão, o sujeito esperto", diz Douglas Martins Izzo, professor de geografia numa escola estadual em Itaquaquecetuba, na Grande São Paulo. "As agressões verbais são as mais comuns, mas eu já fui ameaçado dentro da classe por um aluno que mostrou uma arma escondida sob o casaco e me disse: 'Aqui dentro você é o professor, mas lá fora é uma pessoa comum'."  
  De acordo com uma pesquisa da Unesco de 2002, mais da metade dos professores da rede pública de ensino do Brasil já foi agredida por alunos dentro ou nos arredores da escola. O tráfico de drogas é apontado pelos professores como o grande desafio da escola pública. Muitos alunos são usuários e o tráfico age à vontade. O diretor e os professores sabem quem são os traficantes, mas se recusam a delatá-los à polícia por uma questão de sobrevivência. Em Itaquaquecetuba, uma professora que decidiu dar nomes ficou com o rosto deformado de tanto apanhar. Um funcionário que tentou impedir a venda de drogas levou um tiro dentro da própria escola. "Nas áreas urbanas mais pobres, as crianças vivem em um ambiente de violência em casa e no bairro, o que acaba se refletindo dentro da escola", diz a socióloga Miriam Abramovay, vice-coordenadora do Observatório de Violências nas Escolas, da Universidade Católica de Brasília, e coordenadora da pesquisa da Unesco.
    O professor de inglês Carlos Gomes Martins, que desde o ano passado dá aulas em uma escola estadual em Poá, também na Grande São Paulo, enfrentou uma situação de perigo logo no primeiro mês de trabalho. "Um aluno do ensino médio com o qual eu havia discutido partiu para cima de mim para me agredir durante a aula", diz Martins. "Por sorte foi contido pelos colegas." Uma diferença entre a escola pública e a particular diz respeito ao comportamento dos pais. Na rede privada, o professor é visto como um prestador de serviço e a família reage mal quando o aluno é repreendido. Na periferia, ao contrário, os pais vêem o professor como a última chance de os filhos terem educação. Significa que, em geral, apóiam o professor quando ele é severo com seus filhos.

O retrato da indisciplina 
    Dante Donatelli, coordenador de escola e autor do livro Quem Me Educa? – A Família e a Escola Diante da (In)Disciplina, compilou dez atitudes comuns em colégios particulares de São Paulo e que demonstram o desrespeito dos alunos em relação aos professores: 
1. Tratar o professor como empregado;
2. Jogar objetos no professor em sala de aula;
3. Xingar o professor com palavrões;
4. Negar-se a sair da sala de aula quando expulso;
5. Exigir o direito de escolher a data de entrega dos trabalhos escolares;
6. Ignorar a presença do professor em classe;
7. Entrar e sair da aula à vontade, sem se importar com o professor;
8. Discutir os critérios das notas das provas dadas pelo professor;
9. Dar ordens ao professor;
10. Negar-se a fazer prova e entregar atestados médicos falsos como desculpa.
  
Fonte: Revista Veja, edição nº  1904, 11/05/2005.

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