sexta-feira, 29 de julho de 2011

A Arte de Conhecer a Si Mesmo

"Para descobrir o que somos, primeiro precisamos descobrir aquilo que não somos..."
Autora: Anne M. Lucille[1]



"Aprende-se quando se descobre o que está sobrando, não o que está faltando..."
Supondo que dentro do nosso quarto, exista uma gaveta grande o suficiente para que lá dentro, possamos ir guardando todos os nossos objetos preferidos adquiridos em vida. Na parte de cima de todo esse amontoado, aquela que podemos visualizar com um rápido olhar, estarão espalhadas as aquisições mais recentes. Com o passar do tempo, e depois de camadas e mais camadas de objetos guardados, aqueles que estão lá no fundo, não conseguiremos mais enxergar. Passados mais tempo, e como a gaveta não cresce na mesma proporção que lhe são acrescentados mais e mais trastes, vamos ter de socar tudo com bastante força, de forma a compactar o conteúdo, ou nada mais poderemos ali guardar.

Chegará um ponto tal que, para continuarmos a guardar coisas novas, teremos que jogar fora os entulhos que não nos servem mais. A questão maior é decidir o que parece não nos servir naquele momento, e o que de fato não nos serve em momento algum. Se guardamos é porque nos serviu de alguma forma; é porque julgamos que um dia poderíamos outra vez daquilo precisar. Há também o valor sentimental de cada coisa com a qual acabamos por nos apegar. Mas, em busca de espaço para acrescentar algo mais, resta-nos fazer uma varredura em busca daquilo que aparentemente não tem mais nenhuma utilidade.
Ocorre que depois de tantos anos, depois de tanto socar para caber sempre mais, descobriremos desolados, que muitos objetos armazenados nas camadas inferiores, se removidos, acabarão por danificar outros aos quais estão irremediavelmente colados, atrelados. Trata-se de uma situação crítica uma vez que se removidos, acabarão por danificar vários que desejamos manter. Dessa forma, descer até as camadas mais inferiores torna-se uma tarefa praticamente impossível. Trata-se de uma tragédia pessoal, uma vez que temos a certeza de que deve haver algo por lá, que não nos serve mais para nada. O que fazer então diante de tal calamidade? Se ao menos fossemos capazes de nos lembrar de tudo que há por ali.

Embora o fato de ser capaz de lembrar não resolvesse o problema de espaço, ao menos nos ajudaria a selecionar melhor o conteúdo a ser acrescentado nas camadas superiores, e talvez, pelo fato de lembrar do que estava ali guardado, objetos semelhantes não precisassem mais ser acumulados, e a gaveta não estivesse tão cheia. É lógico que objetos semelhantes estavam ali ocultos pelas camadas de cima, pois ninguém seria capaz de mudar tanto de comportamento e preferências ao longo dos anos, de modo que apenas um exemplar de cada objeto estivesse ali guardado; aliás, é provável que sequer existisse tanta coisa para se guardar, sem que não houvesse semelhança alguma entre elas.

Poderíamos tomar uma resolução drástica e jogar tudo fora de uma vez, assim a gaveta estaria outra vez limpinha para novas aquisições. Mas, com o passar do tempo a coisa se repetiria, e além disso, feita a remoção, nada lhe restaria a não ser alguns poucos e mais recentes objetos. Como poderia então recordar o que foi a sua vida, se tudo se perdera; se apenas umas poucas e mais recentes lembranças seria tudo que restaria? Pior de tudo, supondo que cada um daqueles objetos guardados, fosse uma parte de si mesmo, parte que ao ser descartada, removeria uma respectiva parte de sua personalidade atual? Procedesse a remoção radical, ao final, não restaria nem a si mesmo.
Ocorre que, cada objeto que ali existe, pode ser uma habilidade adquirida, uma qualidade má ou boa; experiências valorosas a partir da superação de erros importantes, e que ora incorporadas à nossa personalidade, nos faculta viver melhor. Jogar tudo fora sem critério, tornaria impossível nossa vida na terra, uma vez que toda nossa experiência de vida e procedimentos para interagir de forma a sobreviver, também são partes inseparáveis desse acervo. Não podemos simplesmente descartar o conhecimento acumulado para nos tornarmos novos ou outra coisa qualquer, isso é impossível. Também, não precisamos vivenciar tudo aquilo outra vez para nos conhecermos. Como fazer então?

Há uma qualidade em nossa mente que transcende a própria mente, e esta é a capacidade de observar a si mesma. Este é então o fator de redenção do homem, uma função que ele precisa conhecer, e então terá a real condição de saber quem de fato é, como ser humano. Não o ser humano com nome e endereço que atualmente imagina ser, mas o “ser” homem como espécie racional diferente do irracional. O “ser”, ente, homem capaz de transcender os próprios problemas, de modo que nenhum deles, a despeito de continuarem a existir, já que o mundo continua como é, não o afetem psicologicamente nunca mais, em nenhum tempo, sob nenhuma circunstância.

Se todos os caminhos conduzem a um mesmo lugar, então não há saída... 
Não se trata, entretanto, de um procedimento, ou método que deva ser adotado, ou prática de alguma forma nova de comportamento, ou exclusão de antigos hábitos em substituição à novos, mas de uma nova postura, onde nada será descartado, mas tudo será compreendido. Muitas vezes guardamos objetos com uma intenção, e em dado momento de nossas vidas, eles nos servem para algo inesperado, completamente diferente da proposta original. O que somos não podemos mudar, mas podemos compreender-nos como somos, e não conforme um ideal de realização projetado pela sociedade, ou por nós, o que também reflete apenas uma projeção da mesma, em nós, como seus veículos de ação.

Compreendermo-nos como somos, não é uma tarefa tão fácil quanto ler um manual de procedimentos, que nos explique passo a passo isso que “somos”, segundo essa ou aquela visão psicanalítica, ou outra coisa, mas antes disso, um empreendimento pessoal, uma jornada que tende a ser absolutamente inédita em nossas vidas. E mais importante, sem ninguém para nos guiar por este ou por aquele caminho; ou método, ou esquema sociológico. Para isso, iremos sim precisar, de todo nosso histórico anterior, não como uma fonte de lembrança, reverência e identificação, mas de observação passiva. Isso nos facultará a percebermos, o que nos serve, e o que não nos serve, dentre esse imenso acervo que está conosco durante todo esse tempo.

Se não sabemos quem somos, a partir dessa larga experiência contida em nossas memórias, podemos descobrir o que não somos. Podemos então nos redescobrir, não de conformidade com o mundo, mas a partir da sensibilidade própria de um observador imparcial, sem influências que possam interferir em sua maneira de se comportar, e reagir. Poderá então esse observador, que é a mente observando a si mesma, em sua ação diária, a medida que vive seus conflitos, angústias e problemas pessoais, aprender o que ele próprio é em frente a tudo isso. Nessa vigília passiva e diária, onde não se atreverá a comentar nada consigo mesmo através de pensamentos, descobrirá o que lhe pertence, o que lhe é necessário; assim como tudo que não lhe pertence, tudo que carrega consigo, mas que não lhe serve.

E apenas assim ele será capaz de conhecer a si mesmo.




Autora: Anne M. Lucille
email: annemarielucille@yahoo.com.br
Veja mais detalhes sobre a autora nas notas abaixo.

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