THAÍS NICOLETI DE CAMARGO
Colunista da Folha Online
Colunista da Folha Online
"A função essencial da língua é a representação mental da realidade, mas o seu sistema é alterado pelos falantes com o fim de exprimir emoções e de influir sobre as pessoas." (Nilce Sant'Anna Martins- "Introdução à Estilística")
A frase da epígrafe é uma lição de estilística, mas, deslocando um pouco o foco do estudo do estilo propriamente dito e pensando na língua, de modo geral, sobretudo na falada, vemos que, na maior parte das vezes, ela é usada para exprimir emoções e influir sobre as pessoas. No dia-a-dia, pode até ser essa a sua função precípua. É fonte de preocupação, por isso mesmo, o poder que as palavras têm de influir sobre nossos estados de ânimo. Fica a impressão de que, muitas vezes, as palavras ultrapassam as intenções de quem as profere.
A intelecção será ainda um mistério? Daquilo que ouvimos, que porção realmente nos chega à razão e à emoção? Ouvimos realmente o que realmente foi dito ou haveria um espaço, um buraco negro da comunicação para onde se desviaria uma boa parcela de nosso material pensado?
Um tema que merece reflexão é a ofensa. As palavras podem ser usadas, de maneira grosseira ou polida, com o mesmo abjeto propósito, o de ofender. A ofensa grosseira, falta de sutileza, é aquela que lança mão do vocabulário chulo, de termos pertencentes ao estrito repertório do maldizer. Quando a pessoa parte para a ignorância, ou seja, xinga a outra, fazendo uso dos chamados palavrões, pouco importa o conteúdo semântico de cada um deles.
Qualquer uma dessas palavras indica apenas que a guerra está declarada. Geralmente, o declarante vocifera um palavrão, se bem que o palavrão também pode ser dito em voz baixa e, nesse caso, a situação é ainda pior.
É próprio do palavrão ser dito em voz alta, como expressão da indignação, do descontrole provocado por alguma circunstância; a palavra grosseira, tal qual uma interjeição, emerge como um clamor. Ora, dizer um palavrão em voz baixa denota, portanto, um acréscimo de má-fé. Tal atitude demonstra frieza e astúcia, consciência do mecanismo da ofensa. Trata-se do palavrão doloso, que conhece seu alcance e, numa espécie de auto-ironia, comporta-se como uma palavrinha gentil, aumentando, assim, seu poder de fogo.
Não é à toa que se vêem reações estouvadas a palavras inaudíveis. E o culpado é sempre aquele que perde as estribeiras, independentemente daquilo que ouviu dito em tom de sussurro. Exemplo recente disso se viu no jogo de futebol da França contra a Itália na última Copa do Mundo, quando o atacante francês Zinedine Zidane respondeu com uma cabeçada a algo que ninguém além dele ouviu. A opinião pública insurgiu-se contra o visível, a cabeçada, que lhe valeu flagrante punição. A palavra dita em voz baixa, em tom de galanteria, ninguém ouviu, ninguém sabe, ninguém viu. Especulações não faltaram (até mesmo para justificar o golpe do atacante), mas o que salta aos olhos é o poder que tem a palavra dita de interferir em nossas emoções.
A opinião dominante, politicamente correta ou aceitável, insistiu em afirmar que Zidane, com toda a sua experiência,deveria ter-se controlado, já que futebol é assim mesmo, provocação é parte do jogo etc.e tal. É fácil falar. A experiência do craque, seu bonito futebol, seus anos de janela, como se diz, nada disso impediu a sua reação. A pergunta que fica é, portanto, por que palavras podem provocar emoções, que poder é esse que elas têm de influir sobre o estado de ânimo das pessoas? As palavras atuam diretamente sobre nossas emoções; qual é o limite entre razão e emoção?
No capítulo das ofensas, que é mais vasto do que poderíamos supor, estão as ironias e até o silêncio de desprezo, todas formas de expressão que visam influir sobre o moral do outro. A palavra também pode produzir alegria, contentamento, satisfação, vontade de viver. O elogio, antítese da ofensa, é o responsável por essa mágica.
Em nosso mundo cada vez mais cínico, todavia, até o elogio é visto com desconfiança. Quantas vezes dizemos diante de um elogio, mesmo que seja em tom de brincadeira, que a outra pessoa está dizendo aquilo porque está querendo algo de nós? Está sempre implícita a possibilidade de falsear o elogio. Pergunta-se, então, por que as pessoas falseiam os elogios (e o fazem freqüentemente, sabemos disso). Fazem-no porque sabem que as palavras elogiosas atuam positivamente sobre o ânimo do outro, tanto quanto as palavras ofensivas atuam negativamente.
Ocorre ainda que um elogio flagrantemente falso torna-se com facilidade uma ofensa. É aí que se instaura a ironia. Se fazer ironia for a real intenção, o falante será bem-sucedido, mas, se o intuito for mesmo o de elogiar, é bem possível que se dê espaço a uma gafe.
A ofensa, venha de quem vier, é sempre terrível porque colide com nossa auto-imagem. Quanto maior a colisão com nossa auto-imagem, maior será o poder de fogo da ofensa. 'O que vem de baixo não me atinge' é sempre uma boa resposta às ofensas, mas a frase é por demais racional para ser lembrada no momento oportuno. Além do mais, venha de onde vier, a ofensa sempre atinge.
O insulto em público é dos piores que pode haver, pois, além de seu conteúdo ofensivo, daquilo que, por si só, provocaria no outro, conclama a opinião pública a posicionar-se. Surge o temor de que os outros concordem com os comentários desabonadores; afinal, os impropérios levam a platéia a refletir e a formar opinião a respeito de uma coisa sobre a qual talvez jamais fosse refletir e, além de tudo, obrigam a uma resposta à altura para demonstrar aos circunstantes que o ofendido é, além de vítima, superior. O ofendido, entretanto, jamais se sente superior, por mais que tente convencer a si próprio disso. A ofensa ecoa, reverbera por muito tempo e é próprio dela rebaixar, solapar, arruinar.
A ofensa vinda de quem amamos é talvez a mais dolorosa. Põe em xeque a imagem que construímos de nós na relação com o ente querido. Faz-nos desmerecedores do amor alheio, amesquinha-nos, humilha-nos, fere-nos mortalmente.
O curioso é que uma ofensa nunca parece falsa, como ocorre com o elogio. Daí que a ofensa empana o elogio, mas não há elogio que apague uma ofensa. O pedido de perdão pode compensar o ofendido, mas também pode ser visto como falso, interesseiro. Vê-se, portanto, que o poder da ofensa é difícil de mensurar. Os estragos que ela produz vão além do calor da hora em que é proferida. Ofender, por isso mesmo, acaba sendo pior que ser ofendido, já que à vítima ainda resta o consolo e a solidariedade que se costuma emprestar aos ultrajados.
Entre aqueles que se valem dos e-mails, o uso de maiúsculas em todas as letras é visto como ofensivo, equivale a estar gritando com o outro. Ai de quem não conhece esses novos códigos e se mete a ofender por aí sem saber...
Thaís Nicoleti de Camargo, consultora de língua portuguesa, é autora dos livros "Redação Linha a Linha" (Publifolha), "Uso da Vírgula"(Manole) e "Manual Graciliano Ramos de Uso do Português" (Secom - Estado de Alagoas) e colunista do caderno "Fovest" da Folha de S.Paulo. E-mail: mailto:thaisncamargo@uol.com.br
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