"O Professor Manda"
O mito professor e a sobrevivência da democracia
José Luiz de Paiva Bello
Rio de Janeiro.
Este texto foi inspirado a partir da contestação da aluna Andrea(*) na sala de aula de um curso superior. Ocorreu que foi realizada uma avaliação por mim e a aluna não recebeu a nota esperada por ela. Em função disso passou a contestar os critérios adotados pelo professor. Passei então a provocar a aluna para que ela argumentasse contra os critérios colocados por mim e sugerisse o seu. Ela não forneceu argumentos para sustentar seu ponto de vista e respondeu irada: "Faça o que quiser: O professor manda".
Este fato, corriqueiro em sala de aula, traz duas questões para serem analisadas: a primeira delas é que a contestação da aluna mostra que o professor dá abertura para que haja contestação; a segunda é a afirmação da aluna que nega a primeira questão levantada nesse caso. Ora, se o professor dá abertura para a contestação de seus alunos, por que esta aluna diz que é o professor quem manda?
A minha resposta para esta questão é que se criou um mito, tanto na figura do aluno, quanto na figura do professor. Por mais que a Pedagogia moderna teorize que a participação do aluno é fundamental no processo de aprendizagem, a realidade nos mostra que o estereótipo desses mitos é que "o professor manda" e os alunos obedecem.
Na realidade os alunos têm muita força, sendo comum encontrar professores que são expulsos da sala de aula por seus alunos através de abaixo-assinados. Mas normalmente isso só acontece com os incompetentes que tentam se passar por "durão". O incompetente, que não incomoda a ninguém, que não estimula, que não dirige o processo de aprendizagem, mas que não reprova, permanecerá em paz com a turma e o poder dos alunos será diluído pelo carisma do professor.
Por outro lado, a maioria dos professores tem interesse em deixar explícito que é ele mesmo quem manda. Assim sendo, não discute nada com a turma, não coloca o programa em discussão, não discute os critérios de avaliação, não dá abertura para os alunos avaliarem a sua aula, enfim, entra em sala com tudo pronto e sai de sala como se tivesse dado uma aula "maravilhosa".
Eu me lembro de um caso que ocorreu em uma faculdade em que trabalhei: cruzei com um colega professor no corredor, ele saindo da sala onde eu iria iniciar a minha aula, e ele me disse: "Acabei de dar uma aula espetacular! Cumpri tudo o que estava programado". Dei a ele meus parabéns e entrei em sala. Depois de deixar minha pasta em cima da mesa, olhei para a turma e quase todos estavam com uma aparência estranha. Então perguntei a eles: "Que caras são estas?" Um aluno tomou a iniciativa e me respondeu: "Acabamos de ter uma aula horrível! O professor 'Fulano' entrou em sala de aula, falou por quase duas horas sem parar, não permitindo uma pergunta sequer. Estamos exaustos."
O fato é verídico e mostra que para o meu colega "o professor manda". Não importa o sentimento, a história, a inteligência ou a criatividade de seus alunos; o que importa é que ele cumpra o que está programado, porque, na sua concepção é assim que deve se comportar o "bom" professor.
Quando o aluno me contou a história não me passou pela cabeça perguntar por que eles não protestaram. Mas cabe aqui a pergunta: por que eles não protestaram? Provavelmente porque, também para eles, "o professor manda".
Outra dedução que pode advir desta questão é que se forma uma cumplicidade perversa entre as duas partes interessadas num processo, em se tratando de educação, que deveria objetivar a aprendizagem dos alunos. Mandar é fácil; ser igual e garantir seu espaço social enquanto autoridade de uma área do conhecimento é que é difícil. Para o professor esta relação de mando/obediência ameniza qualquer possibilidade de conflito entre as partes. Para os alunos, quanto menos conflitos gerados com o professor melhores serão as suas chances de "passar de ano". Quem manda é o rei, o déspota, o autoritário, o totalitário e, se formos entrar em aspectos psicológicos, o inseguro. O democrata, o libertário, o justo, o igual e aquele que está seguro do que está fazendo, tenderá sempre a discutir com o grupo a direção de qualquer processo, reservando a autoridade do professor como um mero técnico de educação, capaz de discutir com a turma qualquer questão levantada em sala de aula. Principalmente se a sala de aula é de um curso superior.
Sob o ponto de vista político a afirmação de que "o professor manda" vai de encontro a toda e qualquer proposta de formação da cidadania e da relação democrática no ensino. Muitos vêm a questão da democratização do ensino como a concretização de não haver indivíduos fora da escola. Melhor dizendo: muitos acham que democratizar o ensino é oferecer vagas nas escolas a todos aqueles que desejam estudar. Mas isso ainda não é democratizar o ensino. Só poderemos admitir que o ensino é realmente democrático quando houver o pleno exercício da democracia em sala de aula. E enquanto o professor mandar o ensino será explicitamente anti-democrático, totalitário. Se pudermos admitir que a escola prepara para a vida e os modelos de relações políticas e sociais serão aplicados pelos alunos na sua vida fora da escola, poderemos também admitir que não é possível esperar que esses alunos, egressos de um sistema educacional onde "o professor manda", estejam preparados para vivenciar uma relação social verdadeiramente democrática. Neste sentido, podemos ainda afirmar que não podemos falar de democracia na República se não vivenciarmos uma relação democrática no interior das instituições de ensino (a começar pela pré-escola).
Se realmente temos interesse em garantir que a democracia prevaleça como sistema, temos que garantir que esta relação seja mudada. Mudar não somente em teorias pedagógicas, mas na concretude das relações diárias entre professores e alunos. O sentimento de que "o professor manda" precisa ser transformado em "o professor dialoga, respeita e dirige um processo de aprendizagem", já que o diálogo, argumentação versus contra-argumentação, é a expressão máxima do exercício da democracia e a contestação a melhor expressão da vivência da cidadania. Sem alterar esse sentimento qualquer proposta pedagógica, por mais libertária que seja a sua intenção, será sempre autoritária e anti-democrática.
A realidade nos mostra que o mito de que "o professor manda" descaracteriza qualquer possibilidade dos alunos criarem seus próprios caminhos na aprendizagem. E se os alunos não participam do processo de planejamento da aprendizagem, esta será praticamente nula. Daí a tal famigerada frase, formulada por um advogado por formação, ex-político e ex-Ministro da Educação no Brasil: "No Brasil, os alunos fingem que estudam, os professores fingem que ensinam e o Estado finge que fiscaliza".
Enquanto este mito for vivo em nossos corações e mentes todo processo de educação estará prejudicado. E teremos que dar razão a Freud que diz que educação é impossível em função da relação de transferência parental que se trava entre professor e alunos.
Todo este texto revela meras constatações. E, de certa maneira, revela um pedaço da realidade da sala de aula. Mas fica para nós a lembrança da célebre pergunta do revolucionário russo que, vencida a revolução, perguntou aos seus pares: "que fazer?"
ADENDO I
Uma colega, ao ler o texto, me enviou a correspondência abaixo que foi respondida por email. Como enriquece o conteúdo do texto acima, resolvi acrescentar.
">Acho seus textos bárbaros.
>Acabei de ler sobre o professor manda.
>Na minha sala de aula anda acontecendo o contrário.
>Existe um grupo de alunos que perderam todo senso de ética. Tratam o
>professor como se eles possuissem uma bagagem de conhecimentos superior,
>como se fossem donos de uma verdade indiscutível.
>Nós, os outros alunos da sala, estamos ficando prejudicados. Conversam
>durante toda a aula, fazem gracinhas, deboches em cima de perguntas dos
>alunos.
>São como as crianças que trabalho de 10 anos, aliás diria que são piores
>pela idade biológica e a falta de maturidade.
>Como vou dar aula na semana que vem, pensei que pedir-lhe uma ajuda.
>Talvez teria um texto que poderia distribuir em sala de aula para ser
>lido.
>Tem algo que possa me ajudar?
>Obrigada,
>Cláudia."
Prezada Cláudia
Você não especificou com qual turma você trabalha. Pelo seu relato parece turma de adolescentes ou crianças, já que este comportamento é típico da fase de protesto contra tudo e contra todos.
Mas essa análise é sob o aspecto psicológico. Sob o aspecto pedagógico existe uma outra questão: a consciência de objetivos dos alunos de sua turma. Qual seria o objetivo de estudantes que se matriculam numa instituição de ensino? Adquirir aprendizagem para aplicá-la em sua vida prática e profissional. Mas é essa a consciência que perspassa pela cabeça de todos eles? Eu acho que não. Para mim eles estão lá conscientes de que no final do curso receberão um diploma, um certificado ou uma espécie de "passaporte" que lhes permitirão entrar nessa vida prática e profissional. Os alunos, e muitas vezes também os professores, não conseguem perceber que ali, diante deles, está um profissional habilitado que, pelo menos a nível teórico, irá lhes ajudar a adquirir conhecimentos que serão fundamentais em seu futuro.
Se os alunos não conseguem perceber isso podemos então deduzir que o sistema de ensino está completamente comprometido. Apesar de também ser grave, já que se trata de um processo de educação tão divulgado pelas leis e pelo governo como educação transdisciplinar e contextualizada, o desrespeito ao professor não é o mais grave. O mais grave, na minha opinião, é que estes alunos estarão se formando (e se for em curso superior é mais grave) sem levar a "mercadoria" por qual pagaram ou foram buscar. É como se eu entrasse numa farmácia, pedisse um vidro de perfume para dar para minha namorada, pagasse e dissesse ao vendedor que eu não levaria o vidro de perfume e, propositadamente, deixasse em cima do balcão.
No nosso caso os alunos vão para a instituição de ensino, pagam as suas mensalidades ou (no caso de instituição pública) têm despesas de condução, lanche, as famigeradas xerox e outras despesas, para deixar a "mercadoria" (que no caso da educação é o saber) na própria instituição.
Considero esta uma das maiores mazelas da nossa educação: a falta de objetivos e o desinteresse por parte dos alunos. Mas será que adianta ficar procurando culpados para as mazelas do ensino? Penso que neste caso os dois lados têm culpa. Tanto alunos quanto professores estão perdendo o prazer de estarem envolvidos no processo de educação formal. Parece que uma chama vem se apagando.
Esta falta de consciência dos objetivos é percebido diretamente nas salas de aula. Os alunos, inconscientemente, devem se perguntar: "para que prestar atenção no que este(a) professor(a) está dizendo se eu não consigo ver importância nenhuma nisso para mim?". E aí descambam para o desrespeito, para a arrogância, para a agressividade e, consequentemente, para a ignorância.
Experimente, por exemplo, oferecer um automóvel para o melhor aluno e veja o resultado. Sendo o objetivo ganhar o automóvel, com certeza, o comportamento da turma irá se modificar. Mas quando não há objetivo aquelas atividades vividas em sala de aula perdem a razão de ser. Ou então quando os objetivos são distorcidos (a aprendizagem é trocada pelo diploma) e a didática perde o sentido em função de interesses diversos (os alunos querendo somente um diploma e os professores querendo ensinar).
Apesar de dito tudo isso a afirmativa de que "o professor manda" continua valendo. Concretamente são os professores que têm nas mãos o Diário de Classe e o poder de dar notas. Dependendo da instituição de ensino esse poder, bem (ou mal?) utilizado pelos professores, garante a eles qualquer coisa em sala de aula. O problema é que em algumas instituições particulares existe o medo dos proprietários em perder os alunos e, consequentemente, lucro. A partir disso permitem tudo, os alunos têm sempre razão e a parte mais fraca fica com os professores que se percebem presos por uma administração escolar desonesta e mal feita.
O que eu poderia dizer é que, quanto mais os alunos perceberem da importância do que está sendo oferecido a eles, mais eles serão responsáveis pelo processo de co-aprendizagem, entendendo que somente isso não basta. É preciso também que os professores se preparem para aplicar com os alunos técnicas que permitam uma aprendizagem de maneira mais fácil e agradável.
Um outra questão fundamental nesta relação professor-aluno é a segurança ou a auto-confiança do professor. Quando o professor consegue transmitir segurança e firmeza para os alunos a tendência é que eles se comportem com mais solidariedade no grupo, incluindo o trabalho do professor.
Obrigado, Cláudia, pela sua participação.
ADENDO II
Um outro colega me enviou mais uma correspondência que também transcrevo como enriquecimento ao texto "O Professor Manda".
>Caro José Luiz,
>Gostaria de que trocássemos idéias sobre AVALIAÇÃO de alunos. Aquela que vira nota. Sinto uma angústia enorme diante dela. Gostei do texto "O Professor Manda". Para mim a prática de avaliar é uma experiência de deserto: Traz a sensação de solidão seguida da esperança de oásis.
>Um grande abraço do José Antonio
Prezado colega José Antonio
Em primeiro lugar tenho que lhe agradecer pelo estímulo. Quanto à questão da avaliação estou preparando um texto sobre isso. Parece que sinto a mesma angústia sua. A avaliação de meus alunos é a pior parte da minha profissão. Eu tenho a sensação de que avalio meus alunos de uma forma completamente subjetiva. Será que um aluno meu que tira sete numa prova "sabe" 70% do conteúdo da minha disciplina? Mesmo que eu busque alternativas de avaliação do rendimento escolar, como trabalhos escritos, não tenho a menor segurança de que eu esteja avaliando com justiça. Além do que percebo que qualquer proposta de avaliação incentiva vários processos de fraudes: na prova, a "cola"; nos trabalhos em grupo, um aluno faz o trabalho (quando não copia dos livros ou tira da própria Internet) e os outros assinam; e nos trabalhos individuais a maioria copia literalmente capítulos inteiros de livros de outros autores.
Gadotti sugere que nos cursos de graduação deveria apenas existir duas menções: aprovado ou reprovado. Ou o aluno está apto a seguir adiante nos estudos e se tornar um razoável profissional ou não. Não existe meia aprendizagem: ou o aluno quis aprender ou não. Esta avaliação requer que se conceitue por meios subjetivos. Mas não serão os meios subjetivos mais objetivos do que os chamados de "meios objetivos de avaliação"? A prova, como meio objetivo, apenas comprova o que o aluno decorou e não o que ele apreendeu para colocar em prática. Não podemos nos esquecer que os cursos de graduação formam profissionais. A avaliação subjetiva, como interesse, participação e criatividade, no meu entender, revela mais o futuro profissional que estamos formando.
Às vezes penso que a Academia de Ciências esqueceu o por que e o para que os alunos estão lá. Eles estão buscando um saber que os capacitem a exercer determinada profissão. Neste sentido, nota para quê? Ou eles estarão capacitados no final do curso para exercer tal profissão ou não.
Não quero me estender muito neste email, mas não acredito no tipo de avaliação que é levada em conta nas Universidades pela maioria dos professores. Como já disse estou preparando um texto sobre isso. Se quiser me adiantar e mandar o seu texto, com máximo prazer, abrirei um espaço na minha Home Page.
Estou pensando também em colocar essa nossa troca de mensagens lá.
Um grande abraço.
Para referência desta página:
BELLO, José Luiz de Paiva.
"O professor manda": o mito professor e a sobrevivência da democracia.
Pedagogia em Foco, Rio de Janeiro, 2000.
Disponível em: <http://www.pedagogiaemfoco.pro.br/filos09.htm>.
(*) A aluna Andrea formou-se em Psicologia na metade do ano de 2002. A ela os meus agradecimentos por me fazer pensar. Na minha formação meus melhores "professores" foram (com todo respeito aos grandes mestres que contribuíram na minha formação) os estudantes que trabalharam comigo; Andrea foi uma delas. Valeu Andrea!