Há um universo moral da criança pequena, ainda rudimentar, que vai desenvolver-se, sofisticar-se com o tempo, mas que merece atenção, sobretudo se quisermos que o desenvolvimento realmente ocorra.
A palavra valor é empregada em várias ciências. Em cada uma delas, seu significado muda sensivelmente. Impõe-se, portanto, esclarecer o leitor sobre o significado que assumirei aqui. Vou definir valor como investimento afetivo. Um objeto torna-se valor para uma pessoa se nela desperta algum afeto, ou seja, se não a deixa indiferente. Deve-se entender objeto no seu sentido intelectual: estamos falando de objeto do conhecimento, que pode ser um objeto físico, uma pessoa, um grupo, uma idéia, etc. Assim definido, é claro que a criança possui valores desde que nasce, pois, uma vez no mundo, inevitavelmente investe sua afetividade nos objetos que pode conceber, embora não tenha, na fase sensório-motora (de 0 a 2 anos), consciência desse fato. Com o emprego da linguagem, tal consciência será possível: a criança dirá, por exemplo, 'Disto eu gosto', 'Disto eu não gosto'. O universo dos valores possíveis expande-se à medida que novos objetos são concebidos pela inteligência.
Isso posto vou restringir-me a um campo de valores: os valores morais. A moral diz respeito a regras de conduta consideradas por determinada sociedade como obrigatórias, como deveres. Uma pessoa comporta-se moralmente apenas se legitimar, intimamente, deveres e, com base neles, pautar suas condutas. Se agir apenas por medo do castigo ou espera de recompensa, sua conduta não será considerada moral, pois a perspectiva do desprazer ou do prazer, e não a convicção íntima determina sua conduta. Qual a relação entre moral e valores? Para explicitá-la, precisamos definir melhor o que seja uma regra, compreender a relação da regra com princípios e, finalmente, a relação destes com os valores morais.
Uma regra é uma formulação verbal que nos diz, com precisão, o que devemos ou não fazer. Exemplo de regra moral: não matar. A virtude da regra é sua precisão. Suas limitações são, por um lado, não nos informar do porquê de sua existência (por que não matar?) e, por outro, o fato de se aplicar a situações específicas. E, como passamos por um número grande de situações diferentes, é claro que não há regras morais para a maioria delas. As limitações da regra são supridas pelos princípios, que traduzem o que se chama de espírito da regra. Exemplo de princípio moral: devemos respeitar todas as pessoas. O princípio moral equivale a uma matriz da qual são derivadas as regras. Metáfora: a moral está para o mapa assim como o princípio está para a bússola. A regra indica claramente o caminho, o princípio, a direção. É evidente que uma consciência moral desenvolvida conhece e preza princípios mais do que regras.
Observamos que regras e princípios referem-se à dimensão intelectual da moral, pois tratam de elaborações racionais. Mas não basta pensar para querer agir, uma vez que a razão não é em si mesma, uma força motivacional. A força motivacional está justamente nos valores morais que, como vimos, pertencem à dimensão afetiva. Por exemplo, se uma pessoa que compreendeu corretamente o que significa o princípio segundo o qual devemos respeitar as pessoas não investir sua afetividade nesse objeto 'pessoa', certamente não seguirá as regras decorrentes do referido princípio. Se a vida não é um valor, por que se submeter à regra 'não matar'? Em resumo, a moral é um universo de regras, princípios e valores.
Cabe perguntarmos agora com que idade uma criança começa a penetrar nesse universo. Isso ocorre por volta dos 4 anos. Antigamente, pensava-se – e alguns ainda pensam assim – que uma criança pequena seria apenas movida por medo de punições e desejo de recompensas, sem dispor de qualquer sofisticação intelectual para compreender a moral e também sem investimentos afetivos que traduziriam valores morais. Ora, não é isso que as pesquisas psicológicas mostram. Há um universo moral da criança pequena, universo este ainda rudimentar, que vai desenvolver-se, sofisticar-se com o tempo, mas que merece atenção, sobretudo se quisermos que o desenvolvimento realmente ocorra. Vamos conhecer esse universo falando, em um primeiro momento, de sua dimensão intelectual e, em um segundo momento, de sua dimensão afetiva.
Dimensão intelectual
Esta dimensão concerne a regras e princípios. Embora, no processo de dedução, os princípios venham antes das regras, no desenvolvimento ocorre o contrário. O primeiro contato que a criança tem com a moral ocorre por intermédio das regras. Desde bebê, a criança é submetida a regras sociais, às vezes chamadas de rotinas (de higiene, de organização do dia, etc.). Desde cedo, portanto, ela sabe que se fazem certas coisas. No entanto, a partir dos 4, 5 anos ou a criança começa a perceber que há coisas que se fazem e outras que devem ser feitas. O caráter de obrigatoriedade, típico da moral, destaca-se do simples hábito, atinente às demais rotinas e convenções.
O conteúdo de tais regras depende, naturalmente, do sistema moral adotado pelos adultos de seu meio. Essa distinção precoce entre as diferentes regras atesta o despertar do senso moral. Quanto aos princípios, serão pouco a pouco compreendidos, à medida que o desenvolvimento for ocorrendo. Do ponto de vista educacional, o fato de o primeiro contato da criança com a moral ocorrer por intermédio das regras em nada implica que os adultos não devam explicar a razão de ser destas.
Assim como se fala com os bebês para que, mais tarde, eles mesmos falem, deve-se explicitar às crianças menores os princípios que inspiram as regras para que gradativamente elas os assimilem (por volta dos 7 anos, serão os princípios que ditarão a moral das crianças, já a caminho da autonomia). Ainda no que tange à educação, devemos acrescentar duas observações. A primeira: uma das pistas que as crianças observam para começar a entender que existe um universo moral é a reação dos adultos com relação à infração às regras morais, isto é, elas percebem que as conseqüências da infração moral diferem daquelas que seguem outras infrações, porque algo de 'sério' está em jogo. A segunda: a polidez consiste em um conjunto de regras que preparam a criança para a compreensão do universo moral. Com efeito, várias regras de 'boa educação' prenunciam virtudes centrais para a moral. Exemplos: o 'desculpe' anuncia a responsabilidade pelos atos, o 'obrigado', a gratidão, o 'por favor', o valor da generosidade. E até mesmo outras formas mais neutras de polidez (o 'até logo', o 'bom dia', etc.) sempre traduzem o reconhecimento da presença do outro e o respeito que lhe é devido.
Quando entender os princípios morais, a criança compreenderá que a polidez é superficial e totalmente insuficiente para compor uma moral, mas a prática da boa educação terá preparado o terreno para que uma assimilação sofisticada da moral possa ocorrer.
Dimensão afetiva
Acabamos de ver que, desde os 4 anos, a criança começa a compreender que há regras e regras e que algumas destacam-se pelo seu caráter de obrigatoriedade. Todavia, não é somente essa característica racional que se observa na criança pequena. Observa-se ainda que ela começa a se dispor a seguir as regras morais, mesmo sabendo que não há um 'vigia' que a castigará se tal obediência não acontecer. Não estamos querendo dizer, é claro, que a criança torna-se uma 'santa' que nada faz desviar do caminho do dever.
Sabe-se que ela freqüentemente desobedece às regras (como muitos adultos, aliás), notadamente quando há outras motivações fortes. Sabe-se também que suas interpretações das regras podem às vezes ser fantasiosas. Mas isso não deve impedir-nos de perceber que comportamentos de obediência espontânea existem e que atestam o começo de um querer agir de forma moral (quem não viu uma criança colocar-se, ela mesma, de castigo por pensar que agiu errado?). Se assim não fosse, seria preciso vigiar sem cessar as crianças de 4 anos, o que não é o caso. A pergunta, então, é a seguinte: que sentimentos motivam a criança a conduzir-se de forma moral?
Apresentarei três, sem pretender esgotar o tema:
1º. Apego/medo:
Piaget sugeriu que as crianças pequenas obedecem não por estarem intelectualmente convencidas de que as regras morais são boas, mas porque respeitam o que para elas é a fonte dessas regras, a saber, os adultos afetivamente significativos (o que não inclui apenas os pais, mas também os educadores). Para elas, esses adultos são autoridades, e o são porque inspiram uma fusão de apego e medo. O apego advém do fato de a criança estar afetivamente ligada a certos adultos de quem ela gosta (especialmente porque a protegem). E o medo advém do fato de ela saber que tais adultos possuem forças e influências muito maiores que as suas próprias e que nada pode contra eles (não se trata, portanto, de uma aprendizagem do medo em razão da violência exercida pelos adultos, e sim do reconhecimento de uma posição de inferioridade de poder). Em resumo, o reconhecimento de papéis de autoridade, inspirado pela fusão do apego e do medo, explica, em parte, o querer agir moral. No entanto, a referência à autoridade não basta para dar conta por inteiro do fenômeno do despertar do senso moral. Outros sentimentos devem ser lembrados.
2º. Simpatia:
Fosse apenas a referência à autoridade a fonte motivacional das ações morais da criança pequena, seríamos obrigados a admitir que preocupações relacionadas ao bem-estar alheio não existem para ela ou são pouco importantes. A obediência ao adulto explicaria tudo, mas não é esse o caso. Observa-se, desde cedo, no desenvolvimento infantil a presença do que se convencionou chamar de simpatia (ou empatia): trata-se da disposição de comover-se com os estados afetivos alheios. A compaixão, por exemplo, é este sentir-se abalado pela dor alheia, o que costuma motivar a ação de ajudar. A compaixão é uma forma de simpatia, mas esta também pode traduzir-se pelo compartilhamento da felicidade alheia. Certamente, não é necessário explicar a importância da simpatia no agir moral dos seres humanos, já que é ela a dimensão afetiva da benevolência ou da generosidade, virtude presente em todos os sistemas morais. Ora, se concordamos com o fato de a criança precocemente ser capaz de simpatia, devemos admitir que tal disposição tem influência decisiva no despertar do senso moral. Pesquisas apontam que, em se tratando de generosidade, a criança pequena mostra-se intelectualmente mais sofisticada do que nas suas avaliações sobre outra virtude, a saber, a justiça.
3º. Confiança:
Outro ingrediente afetivo indispensável para o despertar do senso moral é o sentimento de confiança. A criança deve convencer-se de que não há apenas boas regras, mas há também – e sobretudo – boas pessoas. Se ela percebe que os adultos dizem uma coisa e fazem outra, que não cumprem suas promessas, que usam dois pesos e duas medidas, que são ausentes, pouco protetores, a vontade de ela querer submeter-se a regras morais fica muito enfraquecida, assim como sua reverência a figuras de autoridade. Em suma, sem o sentimento de confiança nos adultos importantes de seu meio social, o envolvimento da criança com o universo moral fica comprometido e o desenvolvimento subseqüente também.
Para finalizar este artigo, proponho algumas poucas palavras de educação, feitas sob forma de duas perguntas e duas respostas. A educação infantil deve trabalhar a moralidade? Uma vez que seu público já navega no universo moral e que, como para tudo, a educação é necessária ao desenvolvimento, a resposta é afirmativa. Os educadores dessa faixa etária devem colocar-se como adultos, como figuras de autoridade, ou como 'amiguinhos' das crianças? Não devem fazer de conta de que são, eles mesmos, crianças, pois a criança precisa de figuras de autoridade, sem as quais se sente desprovida de referências no meio social e no mundo dos valores. Amiguinhos ela costuma ter de sobra; adultos com consciência de que são adultos, hoje em dia, nem tantos...
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