O que, exatamente, caracteriza uma família estruturada?
Há anos que ouço de professores da rede pública queixas contra uma "entidade" supostamente responsável por algumas das maiores dificuldades que enfrentam em seu cotidiano. Não me refiro aos salários aviltantes ou a qualquer dos inúmeros problemas de infraestrutura de que padecem as escolas. Nem às mazelas da formação profissional ou à alegada "obsolescência" das práticas pedagógicas. Trata-se de fenômeno exterior ao campo educacional e que tende a deixar professores de mãos atadas por ultrapassar completamente suas condições de intervenção: é a "família desestruturada" de onde provém um número significativo de alunos.
Desde que ouvi a expressão como forma de explicação da realidade, seu possível sentido me intrigou. O que seria, então, uma família "estruturada"? Um "casal feliz" formado pelo pai provedor e pela mãe educadora, nos moldes em que figuram nas campanhas publicitárias de margarina? Ocorre que essas famílias "exemplares" da mídia eletrônica não se parecem com família alguma que conheço. Não correspondem à própria experiência familiar dos professores, que é tão variada, conflituosa e plural como a de qualquer outro segmento da população que frequenta a escola. Pensei em minha história familiar, em seus dramas afetivos, traumas e até ocorrências policiais. Teria sido minha família desestruturada? Lembrei a variedade histórica e social de "arranjos familiares"; as diferentes maneiras de estabelecer quem cuida de quem e como. Haveria uma "família estruturada" a lhes faltar?
Ao mesmo tempo, se a fala é recorrente, deve corresponder a algum tipo de experiência; embora a expressão não necessariamente descreva um estado claramente identificável, como quando afirmo que João é cego. O que falta a uma família para que ela se converta em "desestruturada"?
Dia desses, contudo, um diálogo que ouvi entre professoras de uma escola pública sugeriu-me uma hipótese. Uma delas fez um relato dramático acerca de Guilherme, aluno que tiveram em comum. Sua guarda havia recentemente sido passada para o pai, mas persistia sua imensa dificuldade em tarefas básicas que são pré-condições para o trabalho pedagógico. Ele não trazia sua mochila. Quando a trazia, não a tirava das costas, perdia os cadernos, livros e lápis que lhe eram dados, não sabia sequer sentar numa carteira e manter-se quieto por um minuto.
Lembrei, então, que conhecera vários Guilherme cuja guarda havia sido objeto de disputas, cujos pais eram consumidores de drogas ilícitas, que tiveram experiências familiares difíceis e até traumáticas, mas para os quais a expressão "família desestruturada" não era aplicada. Seus pais tinham familiaridade com a "cultura letrada", com os procedimentos e valores escolares. Por isso eram "preparados" previamente para as aulas: cadernos colocados na mochila, lembretes e alertas diários para não esquecer o lápis, material para a aula de educação física.
A despeito de qualquer dificuldade afetiva familiar, os 'Guilherme-de-famílias-letradas' compareciam à escola já munidos de um repertório mínimo de práticas que se toma como pré-requisito à ação docente: um tipo de disciplina, uma forma de zelo e familiaridade com os instrumentos escolares materiais e simbólicos que "estruturam" e "preparam" o trabalho do professor. O adjetivo "desestruturada" talvez descreva menos os tipos de vínculos e práticas internas à família do que sua capacidade em formar essas disposições básicas e prévias a um ensino tipicamente escolar, como a alfabetização. Se assim o for, tanto melhor; recupera, pelo menos em tese, a possibilidade de um trabalho pedagógico, mesmo que este tenha de retroceder ao que julgamos básico e anterior. Como dizia a outra professora: "Comigo ele trabalhava. Mas também era tudo dito e explicado. Agora pega a mochila, põe na carteira. Abra o estojo assim. Quem tem um lápis para o Guilherme? Já te falei que tem de trazer..."
José Sérgio Fonseca de Carvalho
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