O que sobrou da sala de aula
Reflexão para um tempo de altas apostas na educação: a praga do economismo não distingue uma escola de uma fábrica de pregos.
30 de dezembro de 2012 - 2h 06 - José de Souza Martins* - O Estado de S. Paulo
Já foi o tempo em que a educação fazia parte do cardápio de otimismos que se costuma apresentar nas passagens de ano. No último meio século, a educação pública e gratuita, que garantira a formação de grandes nomes e grandes competências nas várias profissões, que assegurara o grande salto da sociedade escravista à sociedade moderna, foi progressivamente diminuída e até injustamente satanizada em nome de interesses que não são os do bem comum.
O estado de anomia em que se encontra a educação brasileira pede, sem dúvida, a reflexão crítica dos especialistas, mas uma crítica que a situe na trama própria de tendências problemáticas da modernidade sem rumo para que seja compreendida e superada.
A educação brasileira foi atacada por três pragas que subverteram a precedência do propriamente educativo na função da escola e do processo educacional: o economismo, o corporativismo e o populismo. O economismo na educação não distingue entre uma escola e uma fábrica de pregos. A pedagogia do economismo confunde aluno com produto e trata a educação e o educador na perspectiva da produtividade, da coisa sem vida, da linha de produção.
Importam as quantidades da relação custo-benefício. Não importa se da escola não sai a pessoa propriamente formada, transformada. Importam os números, os índices, os cifrões.
Presenciei os efeitos dessa mentalidade na apresentação de um grupo de militantes da causa das cotas raciais perante o conselho universitário de uma das três universidades públicas de São Paulo, de que sou membro. Aliás, nenhum deles propriamente negro: "Não queremos vagas em qualquer curso; queremos em engenharia e medicina, cursos que dão dinheiro", frisaram.
Quer o governo que os royalties do pré-sal sejam destinados à educação e nem temos certeza de que isso acontecerá. Os políticos têm outras prioridades, especialmente a das urnas. Já estamos gastando o dinheiro que ainda não saiu do fundo do mar. Mas não sabemos em que esse dinheiro fará o milagre de transformar, expandir e melhorar a educação brasileira e de elevar substancialmente o nível da formação cultural das novas gerações.
Dinheiro não educa. Quem educa, ainda hoje, é o educador. É inútil ter máquinas, computadores, tecnologia, maravilhas eletrônicas na sala de aula se, por trás de tudo isso, não houver um educador. Se não houver aquele ser humano especializado que faz a ligação dinâmica entre as possibilidades biográficas do educando e os valores e requisitos de um projeto de nação, a nossa comunidade de destino. Se não houver, sobretudo, a interação viva entre quem educa e quem é educado, se não houver a recíproca construção de quem ensina e de quem aprende. Se não houver a poesia deste verso de Vinicius de Moraes: "E um fato novo se viu que a todos admirava: o que o operário dizia, outro operário escutava".
O corporativismo transformou o professor de educador em militante de causa própria porque a serviço da particularidade da classe social e não a serviço da universalidade do homem. Não há dúvida de que o salário que valorize devidamente o educador e a educação é uma das premissas da revolução educacional de que carecemos. Do povoado do sertão ao câmpus universitário da metrópole, o educador tem carências que não são as carências do Fome Zero. Educação não é farinha de mandioca. "Quem não lê, mal fala, mal ouve, mal vê", dizia Monteiro Lobato, em relação a um item da cesta básica do educador. Fome de educador não é fome de demagogo nem pode ser. Privá-lo dos meios para se educar, reeducar e poder educar é desnutri-lo.
A partidarização de todos os âmbitos da sociedade brasileira, até da religião, levou para dentro da educação os pressupostos da luta de classes. O militante destruiu o educador, drenou da educação a seiva vital que lhe é necessária para ser instrumento de socialização, de renovação e de criação social. A educação só o é na perspectiva dos valores da universalidade do homem, como instrumento de humanização e não como instrumento de segregação e de polarização ideológica, instrumento do que separa e não instrumento do que junta. Na escola, a ideologia desconstrói a escola em nome do que a escola não é.
O populismo, por sua vez, transformou a educação em meio de barganha política, instrumento de dominação, falsificação de direitos em nome de privilégios. O direito que nega a universalidade do homem nega-se como direito. Pela orientação populista, o importante não é que saiam da escola alunos bem formados, capazes de superações, gente a serviço do País. Nas limitações desse horizonte, o importante é que da escola saiam votos, obediências, o ser carneiril das sujeições, e não o cidadão das decisões.
A escola vem sendo derrotada todos os dias, do jardim da infância à universidade, pela educação difusa e extraescolar dos poderosos meios de produção e difusão do conhecimento que já não estão nas mãos do educador. A escola é cada vez mais resíduo de poderes e vontades que estão longe da sala de aula.
* JOSÉ DE SOUZA MARTINS É SOCIÓLOGO, PROFESSOR EMÉRITO DA USP, AUTOR DE A POLÍTICA DO BRASIL: LÚMPEN E MÍSTICO (CONTEXTO)
Fonte: O Estado de S. Paulo
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